
Políticas da imagem
VIGILÂNCIA E RESISTÊNCIA NA DADOSFERA
Beiguelman associa a invenção e distribuição massiva de smartphones a um novo regime de vigilância, não mais instituído pelo Estado, mas resultado da captação sistemática de dados pessoais, oferecidos deliberadamente pelos usuários às plataformas de mídias sociais – a dadosfera. A incontável produção de imagens nos feeds e stories de redes sociais, câmaras de vigilância e registros oficiais configuram, segundo ela, uma nova estética da vigilância.
Imagem digital, selfies, memes, aplicativos de envelhecimento da imagem, waze e google maps, vídeos deep fakes, escaneamento corporal, a internet das coisas, máquinas de reconhecimento facial, inteligência artificial, projeções de protesto em empenas nas cidades, censura digital, todas essas novidades do mundo contemporâneo são analisadas por Giselle Beiguelman para descrever (e ao mesmo guiar o leitor a reconhecer no mundo a sua volta) o papel da imagem nas relações sociais hoje.
Apresentação
A imagem que sai de nosso celular e circula nas redes sociais pode, por exemplo, hospedar-se em bancos de dados destinados a treinar sistemas de reconhecimento facial que incidem de modo desigual sobre os corpos, automatizando o racismo, a misoginia e outras violências. Ao mesmo tempo, corpos convertidos em dados tornam-se rastreáveis não só quanto à presença, como também no nível fisiológico e emocional. Ambientes inteligentes e sensores penetram à distância nos corpos e geram imagens cujos padrões são decodificados apenas por máquinas, e não mais pelo olho humano. Uma “biopolítica porosa” associada a uma reconfiguração radical do olhar, sem reciprocidade possível. Não vemos o que nos olha. Mais ainda, conforme um paradoxo central da política das imagens: ‘somos vistos (supervisionados) a partir daquilo que vemos (as imagens que produzimos e os lugares em que estamos)’.
Outros paradoxos se somam a esse, desafiando nossos regimes de visibilidade e de verdade. Imagens geradas por inteligência artificial, fakes e deepfake povoam o mundo de entes e fatos extremamente realistas, mas que não remetem a nenhum referente. Um realismo sem referente que incide também sobre o tempo: filtros e aplicativos recriam passados renovados, livres de rugas, marcas e traumas. Junto a isso, memes altamente performativos aderem ao cotidiano e tornam-se o palanque da política. Não espanta que este seja também um tempo de negacionismos e revisionismos históricos.
Uma pergunta latente atravessa o livro: como tais rupturas e essa profusão visual sem precedentes se abrem para um porvir da imagem e dos modos de ver? Por ora, a pluralidade visual que daí poderia resultar resta em potência. Pois prevalece a conformação do olhar a rotinas visuais previsíveis e legíveis por máquinas que operam segundo uma agenda de negócios alimentada pela repetição de comportamentos e ‘olhares dóceis’. Mas o livro não sucumbe a esse diagnóstico. Ele convoca, o tempo todo, outras imagens e gestos que, vindos da arte e do ativismo, tomam a política de revés, sacodem os olhares e fazem vibrar, neste estado do mundo, outros possíveis.”
FERNANDA BRUNO

Giselle Beiguelman
Giselle Beiguelman nasceu em São Paulo, em 1962. Formou-se em história na FFLCH–USP em 1984 e doutorou-se em história social pela mesma instituição em 1991. Atua como artista e professora livre-docente da FAU–USP. Promove intervenções artísticas no espaço público e com mídias digitais. Entre seus projetos recentes, destacam-se Memória da Amnésia (2015), Odiolândia (2017), Monumento Nenhum (2019) e nhonhô (com Ilê Sartuzi, 2020). Foi curadora do projeto Arquinterface: A cidade expandida pelas redes (2015). É membro do Laboratório para Outros Urbanismos (FAU-USP) e do laboratório interdisciplinar Image Knowledge, da Humboldt-Universität zu Berlin, e coordenadora do Gaia (Grupo de Arte e Inteligência Artificial do Inova–USP). Suas obras integram acervos de museus no Brasil e no exterior, como o ZKM e o Jewish Museum Berlin, na Alemanha; o Latin American Colection – Essex University, na Inglaterra; o Yad Vashem, em Israel; e o MAR, o MAC-USP e a Pinacoteca de São Paulo, no Brasil. Recebeu da Associação Brasileira dos Críticos de Arte o Prêmio abca 2016, na categoria Destaque. Suas pesquisas abordam a produção e a preservação de arte digital; arte e ativismo na cidade; e as estéticas da memória no mundo contemporâneo. Foi editora-chefe da revista Select de 2011 a 2014 e é colunista da Rádio USP e da revista Zum.